segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ocupado demais para viver

-----Álvaro nasceu em uma família de intelectuais e viveu a sua primeira infância entre fraldas, mamadeiras, partituras, livros, planos de aulas e obras de arte. Seu pai era professor universitário e exerceu alguns cargos políticos, sendo o último deles o de deputado federal. A mãe era musicista e tocava violoncelo na orquestra sinfônica do estado; uma mulher muito disciplinada, perfeccionista e elegante, mantinha sempre a postura adquirida nas aulas de balé na infância e quase toda a adolescência. A casa era um ambiente que inspirava cultura. As estantes eram grandes, mas nunca conseguiam comportar todos os livros que deveriam ser colocados ali. Não havia uma parede nua em lugar algum, pois a quantidade de quadros era maior que o espaço que elas podiam oferecer. A música era uma constante. Havia na sala de estar um magnífico piano de calda que sempre estava cheio de partituras espalhadas. Eles tinham diversos instrumentos musicais, pois ambos sabiam tocar todos eles. Álbuns repletos de recortes de jornal com matérias contendo seus nomes, fotografias e lembranças de viagens ao exterior, de todos os cantos da Terra.
-----Cresceu neste mundo do saber, neste universo de cultura e disciplina, aprendendo a cantar, tocar, representar, escrever, praticar esportes, tendo pouco tempo para as brincadeiras de criança. Quase todas as pessoas com quem ele se relacionava eram adultas. Ele tinha tudo o que precisava e que qualquer pessoa poderia desejar ou mesmo sonhar; brincadeiras, brinquedos, carrinhos, escorregador, gangorra, balanço, amarelinha, passa-anel, ludo etc eram simplórios demais comparados ao seu mundo.
-----Quando chegou o período da adolescência, Álvaro já sabia tocar violino como poucos adultos. Não planejava seguir a carreira da mãe, pois almejava a carreira jurídica. Sempre arranjava tempo para a equitação e já havia conhecido todos os países da Europa. Chegou a planejar estudar na Suíça, mas desistiu de viver longe das pessoas e das coisas de que tanto gostava: a família, os amigos, os saraus, o seu cavalo, aquele piano que ele gostava de tocar antes de sair para a escola, para se sentir mais inspirado, as caminhadas na praia aos sábados à noite, essas coisas. Estudava no melhor colégio da cidade e era de longe o melhor aluno.
-----– Ele pode escolher fazer vestibular para qualquer curso: Medicina, Odontologia, Direito, Engenharia, ele tem condições de passar em qualquer um deles.
-----– Quero que ele escolha com o coração, mas sei que não vai desperdiçar o potencial que tem fazendo um curso simples, vai escolher entre os mais concorridos, certamente. Aliás, ele tem falado muito em Direito. Pelo visto, pensa em ser advogado.
-----Álvaro foi aprovado no vestibular, ficando em primeiro lugar do curso de Direito da universidade federal, atingindo uma pontuação suficiente para aprovação em qualquer curso que escolhesse. Algum tempo depois conheceu uma excelente moça, de excelente família, muito culta, que viera de férias dos Estados Unidos, onde cursava Medicina. Era filha de um senador, amigo de seu pai. Os dois tiveram uma rápida aproximação e Álvaro logo percebeu que aquela era verdadeiramente uma mulher à sua altura. Ele tivera algumas namoradas, mas normalmente as perdia por incompatibilidade de horários, ou melhor, Álvaro tinha tantas atividades que não conseguia dar a devida atenção a elas. Uma médica jamais seria exigente quanto a horários. Ela estava estudando em uma universidade especializada em saúde, em Loma Linda, Califórnia.
-----– É maravilhoso, você não acha? Nossos filhos começando ao mesmo tempo a prática profissional e casando-se – as duas mães estavam nas alturas, aquele seria o casal perfeito. O casamento foi uma das mais badaladas festas dos últimos tempos na cidade. Foi adiado duas vezes porque a noiva precisou atender chamados de urgência em sua clínica. Mas quando enfim o dia chegou, tudo foi como nos contos de fadas. A cerimônia vespertina e a recepção ocorreram no mesmo local, a fazenda dos pais da noiva, uma propriedade de muito requinte. O valor dos presentes era formidável, pois eram bens de valor pessoal inestimável. Depois daquele evento social de repercussão cultural, os noivos não puderam viajar. Os compromissos profissionais da noiva com a sua clínica e do noivo com o seu escritório de advocacia tornaram a lua-de-mel restrita a uma noite de sábado e um domingo em um hotel fazenda perto do local da festa e celulares desligados. Álvaro chegou a checar os e-mails.
-----Tendo empresas, artistas, políticos, esportistas de renome como clientes, Álvaro tornou-se em pouco tempo o homem mais bem sucedido e rico na sua idade em toda a cidade, mas o seu trabalho era incessante. Com o passar do tempo, era a atividade constante de sua vida. O cavalo foi esquecido, os instrumentos não tinham utilidade, as viagens abandonadas, mas o sucesso profissional aumentava mais e mais. A residência do casal era uma casa de setecentos e cinqüenta metros quadrados com sauna, piscina, quiosque com churrasqueira, salão de jogos, academia toda equipada, cinema, vários quartos, uma enorme biblioteca, que já não continha muita literatura, mas livros técnicos, um lindo piano de cauda na sala, jardim de inverno, uma sala de jantar com mesa de doze lugares, que só era usada quando, raramente, o casal conseguia se encontrar e trazer convidados para tratar de negócios. Os empregados, entre eles dois motoristas que conduziam o casal, separadamente, em seus cinco automóveis, lamentavam o desperdício de tantos bens de alto valor, que foram adquiridos para ficar sem uso.
-----– Sempre que eu limpo esse piano, fico imaginando como deve ser linda a música que ele faz.
-----– Parece que a gente trabalha numa casa fantasma. E os patrões são ainda tão novos!
-----– Qual será a idade deles?
-----– Eu sei que ele tem trinta e cinco anos, pois já tive que enviar alguns documentos para o escritório algumas vezes.
-----– Dizem que ela é mais nova.
-----– Ah, pelo menos eles são ricos. A gente fica aqui falando, falando, mas quem é rico é que é feliz. Só uma bolsa da marca que a patroa usa custa dez vezes o valor do meu salário, eu vi no shopping. Quem me dera!
-----– É muito dinheiro.
-----Raras vezes o casal dormia junto. Quando Álvaro não ficava na biblioteca estudando um caso importante, sua esposa ficava presa na clínica, em uma emergência. Eles conversavam mais com os colegas de trabalho, sobre trabalho, do que um com o outro.
-----– Você confirmou a sua participação no congresso de Direito Desportivo? – num raro momento de café da manhã juntos, a esposa perguntou.
-----– Hoje vou verificar a possibilidade de delegar as tarefas que terei na mesma data. A audiência com uma das clientes mais famosas será exatamente na mesma época, no Rio de Janeiro. Com toda certeza, a imprensa estará lá, desde revistas de fofoca até as mais sérias agências de jornalismo. Não sei o que fazer, pois o congresso reunirá grandes juristas e a minha palestra poderá trazer mais clientes importantes nesse setor que tem dado altos ganhos. Vou decidir isso hoje.
-----– Se você for ao Rio, talvez eu vá junto, se for possível.
-----– Está bem.
-----A passagem de avião foi comprada com pouca antecedência e o vôo estava lotado. Duas horas antes do horário do vôo, Álvaro tinha uma audiência simples que decidiu fazer porque o cliente era um pouco melindroso e as duas partes já haviam conversado e decidido por um excelente acordo. O seu motorista ficou no estacionamento do fórum, a bagagem toda pronta, aguardando para levá-lo ao aeroporto. A audiência atrasou quarenta e cinco minutos e o que estava programado para ser um acordo, que beneficiaria mais o seu cliente, tornou-se uma séria discussão com hostilidade entre as duas partes. O motorista enviou um torpedo no celular informando sobre a iminência do vôo, como combinado, mas a audiência nem dava sinais de que estava perto de terminar.
-----Álvaro saiu do fórum atrasado e perdeu o vôo. Chegando ao aeroporto, seguiu apressadamente para o balcão da companhia aérea e remarcou o bilhete para três horas depois, fazendo um roteiro mais cansativo e sendo obrigado a ocupar um assento central em fileira de três assentos. Chegou ao local do congresso muito cansado. O evento já havia iniciado e ele seguiu diretamente ao auditório, deixando a bagagem na recepção.
-----Depois da programação daquela noite, que encerrou perto das vinte e três horas, foi para a suíte e começou a repassar a sua apresentação. Telefonou para os colegas que fariam o trabalho que tanto queria poder fazer. Não conseguia se desligar daquilo até começar a pensar se a esposa estaria chateada por não ter ido ao Rio. Havia algum tempo, sentia que um abismo estava se formando entre os dois e não sabia dizer ao certo que sentimento isso lhe causava.
-----Tinha a impressão de que não se importava e então se sentia culpado. Ainda, tinha o caso com a secretária de um colega. Nunca tinha imaginado que aquilo iria causar tanto problema. Se fosse sua secretária, já a teria demitido, mas era a mais eficiente secretária que o seu colega já havia conseguido. Não sabia o que fazer nem como resistir àquela mulher tão marcante. Estava sendo muito complicado manter a vida dupla de marido que trai. Telefonou para a recepção do hotel e orientou o funcionário a despertá-lo às sete, pois o seu compromisso seria às oito e queria fazer o desjejum tranquilamente. Cansado e estressado, demorou a adormecer.
-----A sua suíte tinha uma varanda com uma rede pendurada, que ele mandou tirar. Ficava no piso superior do prédio e logo abaixo estava a piscina. Quando ele estava fazendo a barba, ouviu o som de uma música agitada, do pessoal que fazia hidroginástica, e ficou aborrecido com aquele ruído pela manhã. Saiu caminhando apressadamente, não sabia mais caminhar devagar, para o local onde o café da manhã era servido. Também não sabia mais comer lentamente.
-----O congresso foi um evento muito bem divulgado. O auditório tinha capacidade para duas mil e quinhentas pessoas e estava lotado. Os maiores nomes em Direito Desportivo estavam presentes e a imprensa estava fazendo a cobertura. Alguns representantes de importantes atletas estavam presentes e inclusive um grande jogador de futebol deu uma passada por lá antes de ir ao aeroporto tomar um vôo para a Itália. A palestra de Álvaro foi marcada para as nove horas, mas ele já compunha a banca desde as oito.
-----O evento iniciou sem atraso. Álvaro foi convocado e ocupou o seu lugar na banca. A abertura dos trabalhos foi feita e haveria duas palestras antes da sua. No decorrer da segunda palestra, o seu semblante foi mudando. Era notório que alguma coisa estranha estava acontecendo com ele. Alguns estudantes no primeiro banco comentaram:
-----– O que está havendo com o Dr. Álvaro Cavalcante? Olha a cara dele, que estranho!
-----– Parece que não está se sentindo bem.
-----Um estudante que estava trabalhando como voluntário no congresso aproximou-se e perguntou se ele queria alguma coisa. Ele disse apenas “não sei” e o rapaz ficou desconcertado. Na hora de sua palestra, quando foi apresentado, Álvaro se levantou e foi à tribuna, conduzido por aquele estudante. Olhou para a multidão, holofotes, luzes, aplausos, estranhou tudo aquilo e falou ao microfone:
-----– Peço desculpas a todos vocês. Estou há alguns minutos tentando lembrar como vim parar aqui e o que teria que fazer agora. Sei que estou em um hotel em São Paulo e que todos vocês me conhecem, mas realmente não sei se conheço vocês. Gostaria de ir ao meu quarto agora e telefonar para a minha esposa. Muito obrigada pela afeição. Espero ser útil em outra ocasião – foi mais ou menos isso. Depois saiu andando, deixando sobre a mesa o seu laptop, e foi à suíte para fazer o telefonema.
-----Todos no auditório ficaram abismados e o burburinho logo se formou. O diretor do evento solicitou ao pessoal que fosse discreto e providenciou assistência ao palestrante. O evento prosseguiu naturalmente e o retorno de Álvaro para casa foi monitorado.
-----Ele não havia esquecido de tudo. Lembrava-se das pessoas do seu convívio e do que elas representavam, mas não lembrava das pessoas com quem não convivia intimamente. Não lembrava de nada que se referia ao seu trabalho, nem mesmo onde ficava o seu escritório. Levado pela sua mãe ao local, elogiou as instalações como se nunca tivesse ido ali. Quando alguém perguntou qual era a sua profissão, disse que não sabia. Não recordava de nada nem ninguém do prédio onde ficava o seu escritório. Uma mulher muito bonita se aproximou, deu um beijo no seu rosto, olhou bem dentro dos seus olhos, mas ele apenas disse “boa tarde, senhora”. Ela saiu com os olhos tristonhos.
-----Os profissionais que lidaram com o seu problema, a princípio, pensaram que o estresse teria causado um bloqueio temporário de sua memória, mas o tempo foi passando e não havia melhora.
-----O escritório foi vendido aos advogados que trabalhavam com ele e o grande letreiro que tomava um grande espaço na fachada do prédio onde se lia Álvaro Cavalcante e Advogados Associados foi substituído por outro. O advogado contratado pela esposa para tratar da questão garantiu que ela não devia ficar preocupada, pois o seu marido havia acumulado uma fortuna suficiente para ter uma vida inteira de absoluto conforto. Todavia, oito meses depois ela pediu a separação.
-----Exatamente dois anos se passaram desde o dia da palestra não proferida no congresso de Direito Desportivo e a memória de Álvaro não foi em nada restabelecida. Ele sabe que esteve em São Paulo naquele dia, lembra o nome do hotel e de ter ido ao auditório, ser apresentado, aplaudido e de tudo o que falou para o público, que era numeroso. Não lembra de nada mais, a não ser do que estava relacionado à sua vida pessoal.
-----O seu tratamento não irá prosseguir, já fizemos de tudo para convencê-lo da possibilidade de retomar a sua vida. Mas ele não aceita de maneira alguma. Ele sempre diz que não precisa voltar a ser o que era, pois está muito feliz sendo como é e não consegue acreditar que levava a vida daquele jeito. Explicamos que a memória foi abalada por causa do estresse, que ele pode tentar reduzir o ritmo em que vivia. Ele não aceita.
-----Neste exato momento, está na fazenda que adquiriu há alguns anos como pagamento de honorários por uma grande causa. Dizem que o lugar é lindo e que ele nunca estivera lá antes do que houve. Ele foi campeão de equitação na adolescência e certamente está cavalgando.
-----Estive em sua casa na semana passada e ele tocou uma música belíssima ao violino, acompanhado pelo pai ao piano e pela mãe ao violoncelo. Eles são artistas incríveis, nem consigo descrever. Percebi que os empregados da casa estavam maravilhadas ouvindo aquilo e fiz questão de entrevistá-los.
-----– Não sabíamos que o Dr. Álvaro era tão talentoso. Eu sempre sonhei ouvir o som desse piano. É magnífico!
-----– O Dr. Álvaro finalmente está vivendo. Ele usa a piscina todos os dias, agora, malha com um professor particular, vê filmes com os amigos, recebe pessoas para jantar ou almoçar, viaja. Ele até vai à cozinha de vez em quando e pede para a cozinheira ensinar a fazer pratos especiais. É muito engraçado.
-----Realmente não conseguimos encontrar o caminho para trazer de volta as lembranças da vida do advogado Dr. Álvaro. Sei que o Álvaro não quer voltar a ser aquele homem. Confesso que gosto muito do atual, pois este ama a vida e aquele amava o trabalho.
-----O sol surgiu no horizonte iluminando a paisagem verde com suavidade, entrando pela janela do seu quarto como um sopro que faz acordar com carinho. Os pássaros emitiam uma doce música, o vento trazia beleza à imagem de árvores e flores ao redor. Da cozinha, o cheiro gostoso de um alimento saudável, feito com amor para ser saboreado lentamente. O abrir das janelas trazendo o aroma do campo com uma nostalgia surpreendente: a lembrança de uma vida que nunca havia sido vivida. As pessoas sorriam com a beleza do “bom dia” no falar sincero das amizades incondicionais. O dia seria inteiramente desfrutado, o café da manhã calmamente aproveitado. A natureza estava ali inteira, plena, pronta para fazer alguém feliz. O mundo inteiro havia desaparecido. Agora importava viver, sonhar, amar. Sujar os dedos de terra, ver uma planta brotar, correr, nadar, deitar-se debaixo de uma árvore, jogar alguém na piscina, fazer brincadeiras, ser criança, dar gargalhadas e parecer um debilóide, sendo ao mesmo tempo mais amadurecido que nunca. Sua vida havia finalmente começado. A partir de então, valeria a pena acordar pela manhã, valeria a pena andar pelas ruas, telefonar para alguém, cometer erros e acertos, pedir perdão, ter esperança, inventar algo novo, sonhar. Um novo Álvaro surgiu, seguiu vivendo e sendo completamente feliz.

Um comentário:

Ylago disse...

Olá!
Adorei este post! Congratulations!
Quem é mais ocupado do que aquele que menos tem a viver?
É uma pena que encontramos muitas pessoas semelhantes à Alvaro (antes do seu bloqueio mental).
E a mensagem que fica é, não há mal que não venha para o bem.