Por Késia Mota
Um casal passa a noite fazendo amor em Hiroshima.
Ela é francesa; ele, japonês. Após vinte
e quatro horas, ela voltará a Paris, onde é esperada, mas ele deseja a sua
permanência na simbólica cidade. É um filme sobre Hiroshima, um filme sobre
lembranças, um filme sobre o amor. Juntos, o casal passa as últimas horas na
cidade japonesa. Nesta ocasião, a história de Hiroshima é revisitada. Mais que
isso, a história de amor adolescente da personagem. "Hiroshima, meu
amor" encanta pelo tom poético que o caracteriza do início ao fim. Há na
abertura, em que aparecem os créditos, a imagem de um fóssil de vegetação e uma
significativa introdução de trilha sonora.
A música de Georges
Delerue e Giovanni Fusco transmite ao ouvinte um clima de ansiedade e mistério,
intercalado vez ou outra por certa calmaria. Em compasso ternário[1],
como uma valsa, a música inicia com um instrumento de sopro, provavelmente um
clarinete, tocando a frase[2]
principal[3],
transmitindo um certo suspense e é respondida[4]
por um piano que concorda com o que diz o clarinete. Aos poucos essa frase vai
crescendo em intensidade[5]
e mudando de tonalidade[6],
aumentando o clima tenso de suspense, até que entra uma flauta iniciando uma
nova frase em resposta à primeira, amenizando a tensão em notas descendentes[7],
como que dizendo "Acalme-se, tudo vai ficar bem". Com isso, o
clarinete responde em graus conjuntos[8]
e em dueto com outro instrumento, retoma a tensão anterior, mas em clima de
dúvida, descrença. Seria um "Será? Duvido". Esse diálogo segue ao
longo da música, aparecendo ainda alguns outros instrumentos, tendo a flauta
como amenizadora da tensão e suspense transmitidos pelo clarinete e o piano
entre eles, angustiado, concordando ora com um, ora com outro. No entanto a
música encerra deixando no ouvinte a sensação de que tal diálogo não chegou a
uma conclusão (se a tensão era justa ou se haveria paz), transmitindo mistério
e inquietação.[9]
Pela análise da
introdução, nota-se que toda a trilha sonora é elemento intensamente
significativo e belo em "Hiroshima, meu amor". A delicadeza das falas
dos personagens, ao mesmo tempo de suavidade e força, a reflexão que pode ser
proporcionada ao espectador, os movimentos, ora lentos, ora rápidos, tudo é
acompanhado positivamente pela representativa trilha sonora.
Imediatamente depois da abertura, com o escurecimento
total da tela, inicia-se a encantadora e extremamente simbólica cena que pode
ser considerada o preâmbulo do filme. Os braços do casal entrelaçados, ao som
de uma belíssima e suave música. Primeiro os corpos estão cobertos de cinzas,
mas em movimento. É como se fosse um abraço ocorrido no momento da tragédia de
Hiroshima, como se ele a estivesse protegendo, pois as cinzas caem sobre os
corpos, como uma chuva da poeira radioativa. Em segundo lugar, as cinzas passam
a ter brilho, intensificando a ideia de poeira de radioatividade. Chove poeira
brilhosa sobre os corpos, ele sempre parecendo abraçar para proteger a mulher.
Na terceira parte, já não há mais cinzas nem chove poeira. Os corpos estão
suados, o abraço já não parece de proteção, mas abraço sensual de corpos
deitados, e ela está sobre ele. Em seguida, na quarta parte, os corpos
continuam suados, em abraço sensual, e agora ele está sobre ela. Na quinta
parte do preâmbulo, bem maior que as quatro anteriores, ocorre um poético
diálogo; a cena do abraço é intercalada por ilustrativas cenas de Hiroshima. Os
corpos não estão mais suados, o abraço sensual agora é mostrado a partir das
costas dele e as mãos dela aparecem acariciando estas costas.
Logo depois desse
preâmbulo, tocando os ombros e as costas dele, a personagem diz: "É incrível
como a sua pele é bela." É exatamente neste momento que encerra o fundo
musical e o som ao fundo passa a ser de grilos, animais noturnos. Percebe-se
que as próximas cenas e os próximos diálogos, a partir de então, referem-se ao desenvolvimento
da história, é o enredo. Essa passagem do preâmbulo para o desenvolvimento da
história é bem perceptível ao espectador.
A análise de um filme
rico como este é uma atividade que pode ser realizada a partir de inúmeras
categorias. A forte personagem, o jogo com o tempo, os espaços – Hiroshima,
Nevers, Paris –, a trilha musical, o enredo e muitos outras categorias
certamente rendem trabalhos interessantes e importantes. Porém, depois de
assistir ao filme diversas vezes e perceber as significativas representações nele
presentes, especialmente considerando o poético e belo preâmbulo, nota-se que
vale muito analisá-lo a partir da noção de metalinguagem, isto é, da
metaficção. Relevante a contribuição de Bernardo (2010), Stam (1981) e Waugh
(1984) a respeito do tema.
Para Gustavo Bernardo (2010), a metaficção é o além
da ficção e é a ficção dentro da ficção. Patricia Waugh (1984, p. 2 e 5) ensina que "metaficção é um termo dado à
escrita ficcional que auto-consciente
e sistematicamente chama a atenção para seu
status como um artefato, a fim de colocar questões sobre a relação entre ficção e realidade"[10] e que "metaficção é uma
tendência ou uma função inerente
a todas as narrativas"[11]. Robert Stam (1981, p. 55), nomeando metaficção como "arte
auto-reflexiva", afirma que ela "chama a atenção de maneira
provocante, para seus próprios artifícios".
Sendo um filme
sobre a terrível catástrofe da bomba de Hiroshima, o enredo de "Hiroshima,
meu amor" vai além do relato dos
fatos históricos. Fala da catástrofe, mas não é só isso. É uma narrativa dentro
da narrativa histórica. É, portanto, um filme essencialmente metaficcional.
Bernardo (2010, p. 60) bem comenta que "[...] não se representa a
realidade para repeti-la ou duplicá-la, [...], mas sim para dobrá-la, isto é,
para recriá-la outra."
A personagem
fala da tragédia de Hiroshima e ao mesmo tempo da sua própria tragédia, quando
jovem, em Nevers, França. O espectador observa, em outro momento do filme, que a
personagem, no passado, teve os cabelos
tosados, perdendo a cabeleira, como as mulheres vítimas da bomba. Também a
bicicleta retorcida, que aparece na cena em que ela fala do ferro retorcido,
tem relação com a sua lembrança da bicicleta que usava na juventude para
encontrar o namorado alemão e que foi seu transporte no "exílio" para
Paris, uma viagem de dois dias. No decorrer do filme, o espectador pode
perceber diversas relações entre a história de Hiroshima e a história da
personagem. Não é à toa que ela declara ter observado a si mesma enquanto
observava as pessoas. É por isso que Waugh (1984, p.
7) declara:
"Escrita metaficcional contemporânea é ao mesmo tempo uma resposta e uma contribuição
para uma noção ainda mais
profunda de que a realidade ou a
história têm caráter provisório: não mais um mundo de verdades eternas, mas uma série de construções, artifícios, estruturas não permanentes[12]."
Para elaborar o roteiro de um
filme sobre Hiroshima, uma história real mundialmente conhecida, Alain Resnais
e Marguerite Duras criaram a história de uma mulher francesa temporariamente em
Hiroshima. Mulher que teve, na juventude, um grande amor, porém proibido. Este
atributo do filme ilustra o ensinamento de Bernardo (2010, p. 166) sobre "metaficção
historiográfica do século XX: ele parte de um episódio histórico 'real' para a
seguir descartá-lo e não mais se referir a ele, como se não fosse
importante." O autor afirma, inclusive, que "[...] a presença do
personagem histórico em um trabalho de ficção não torna a ficção mais
'histórica', e sim contamina de ficção a história." (BERNARDO, 2010, p.
184)
Existe uma narrativa dentro da narrativa, em "Hiroshima,
meu amor", isto é, uma história
de vida dentro da história coletiva (real) da cidade símbolo da bomba atômica.
Acontece que "[...] uma ficção se encontra dentro da outra – e uma nunca é
a simples reprodução da outra, mas outra coisa." (BERNARDO, 2010, p. 88).
"Hiroshima,
meu amor" é uma narrativa sobre Hiroshima que evita com sucesso fazer uma
cópia dos relatos dos noticiários e documentários. Sabendo-se que Alain Resnais
foi contratado para fazer um filme sobre Hiroshima e, depois de assistir a
todos os documentários sobre o tema, negou a possibilidade de reproduzir o
mesmo que outros já haviam mostrado e, assim, buscou a colaboração de
Marguerite Duras para elaborar um roteiro que unisse os fatos reais, o cinema e
a literatura[13], entende-se perfeitamente
o que ensina Bernardo (2010, p. 182): "A
verdade 'mesma' é cinzenta, sensaborosa e, em última análise, inacessível, ao
passo que a verdade do poeta é colorida, suculenta e intensa." Semelhantemente,
Stam (1981, p.65) ensina: "[...] É a ficção antiilusionista
que, em vez de oferecer-nos uma narrativa linear e contínua, confronta-nos com
uma proliferação de histórias que parecem se multiplicar por fissão. Inúmeras
histórias ocorrem simultaneamente. [...] entrelaçaram as
histórias-dentro-da-história em um labirinto narrativo".
Já que esta
análise é sobre um filme, falar de história dentro da história é também falar de
filme dentro de filme, situação presente em "Hiroshima, meu
amor". Uma atriz
representando uma atriz, um filme sobre Hiroshima dentro de um filme sobre
Hiroshima. Talvez esta seja a mais evidente e explícita marca de
metaficcionalidade em "Hiroshima, meu amor". Pouco depois que o personagem comenta que não se
zomba de filmes sobre a paz, em Hiroshima, as cenas são das filmagens. O
expectador pode ver parte das técnicas de realização de um filme. Aparecem
iluminadores e câmeras colocados em um andaime; aparece alguém, talvez um
contrarregra, orientando figurantes; aparece um ator com o corpo todo maquiado,
como se fosse uma vítima da bomba, tudo isso enquanto os personagens principais
falam de amor. É o filme em análise
demonstrando o que ensina Stam (1981) sobre expor os seus próprios artifícios, suas
próprias técnicas.
Outra situação
em que "Hiroshima,
meu amor" "chama a atenção
de maneira provocante para os seus próprios artifícios" (STAM, 1981, p.
55), é quando a personagem diz que conhecer-se em Hiroshima é incomum. Conhecer
alguém em Hiroshima, ter um relacionamento amoroso com um cidadão de Hiroshima,
uma mulher francesa apaixonar-se em Hiroshima, isso é incomum. Quer dizer, não
é comum ouvir falar nisso. Colocar esta fala na personagem do filme é como
declarar ao espectador que o filme é incomum porque conta uma história
inesperada, algo incomum sobre Hiroshima. Não as bombas ou as vítimas, as
doenças, a destruição, a guerra ou qualquer outro tema que é comum a respeito
de Hiroshima. Conhecer-se em Hiroshima é incomum. O filme é incomum. Esta é uma
bela marca de autorreflexividade no filme.
Na sequência do
diálogo, o personagem interessa-se pelo que acontecia à personagem no momento
da bomba e o que o fato histórico significou para ela. É o texto fílmico
revelando que, já que várias histórias pessoais aconteceram, enquanto ocorria a
história de Hiroshima, o filme pode contar mais do que somente os fatos
relacionados à bomba pois estes fatos tiveram diferentes sentidos para
diferentes experiências pessoais.
Perto do final
do filme, quando os personagem estão na estação de trem (ou rodoviária), ele
diz a uma senhora idosa "Nós estamos tristes por nos separarmos". Exatamente
neste momento, ela sai do local, toma um táxi e vai para um bar chamado
"Casablanca". Ele a segue. Impossível não pensar no filme intitulado
"Casablanca", vencedor do Oscar de melhor filme em 1943, que conta igualmente
a história de uma mulher que encontra o amor em um país estrangeiro e depois
volta sem este homem para a sua terra. Bernardo (2010, p. 43 e 244) diz que a
"intertextualidade [...] integra os processos metaficcionais" e que
"esse diálogo entre discursos já torna esse gênero metaficcional por
excelência."
Muito
interessante observar o quanto é explícita esta intertextualidade. O espectador
é evidentemente induzido a perceber que a intertextualidade ocorre. Não é
disfarçada. O casal está numa estação de trem (ou numa rodoviária), em
"Hiroshima, meu amor", o que lembra o aeroporto, em
"Casablanca". Ela pega um táxi e vai sem ele para um bar, não mais
uma tradicional Casa de Chá[14],
como de costume, no Japão, e como aconteceu antes, no próprio filme. Lembra o
bar de "Casablanca". Provavelmente, ele não partirá com ela, nem ela
permanecerá com ele, igual ao que acontece em "Casablanca". Enfim, é
uma intertextualidade que não passa despercebida. Outras relações de
intertextualidade, ao longo do filme, poderiam ser apontadas, além desta, como
as semelhanças com a obra de Hitchcock, por exemplo. Mas seriam relações que
passam um pouco despercebidas. Somente o espectador mais atento notaria.
A ideia de que
em metaficção são explícitos os signos ficcionais é defendida por Bernardo (2010,
p.
181): "Sabemos que a metaficção é uma ficção que explicita sua condição de
ficção, quebrando o contrato de ilusão entre o autor e o leitor, ou entre o
diretor e espectador. A metaficção se define bem como uma ficção que não
esconde que o é, obrigando o espectador, no caso, a manter a consciência clara
de ver um relato ficcional e não um relato 'verdadeiro'."
Diante de
todo o exposto, pode-se considerar "Hiroshima, meu amor" um filme
carregado de signos metaficcionais. Waugh (1984, p. 3) ensina que " 'meta' termos, portanto, são necessários a fim de explorar a relação entre o sistema lingüístico arbitrário e
do mundo a que
aparentemente se refere. Na ficção
eles são necessários a fim de explorar a relação entre o mundo da ficção
e o mundo fora da ficção[15]".
Tamanha carga de metaficcionalidade de "Hiroshima,
meu amor" atende a esta necessidade. É
de se dizer que isto faz dele um filme forte, intenso e muito rico,
artisticamente. Se ele foi feito com a intensão de marcar eternamente a memória
dos seus espectadores, então obteve todo êxito nisso.
Susan Sontag
(1987, p. 16) diz que "a arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar
nervosos". "Hiroshima, meu amor" nos deixa muito nervosos. Impossível
não se sentir fascinado por este filme, positiva ou mesmo negativamante, seja
por causa da sua poesia, por sua musicalidade, por sua força estética, seu
elenco belo e atuante, e até mesmo por ser uma obra de arte que favorece,
academicamente, a possibilidade de realizar inúmeras análises, em diversas
categorias e perspectivas diferentes.
REFERÊNCIAS:
BERNARDO,
Gustavo. O livro da metaficção. Rio
de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010.
HIROSHIMA,
meu amor (Hiroshima mon amour). Direção: Alain Resnais. Roteiro: Marguerite
Duras. Elenco: Emmanuelle Riva, Eiji Okada e outros. Trilha Sonora: Georges
Deleure e Giovanni Fusco. França/Japão:
Argos Films, Como Films, DAIEI Motion Picture Co Ltd et Pathe Overseas
Productions, 1959.
SONTAG,
Susan. Contra a interpretação. Trad.
de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, 1987.
STAM, Robert. Homo Ludens: O Gênero Auto-Reflexivo
no Romance e no Filme. In.: O
espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Tradução
de José Eduardo Moretzsohn. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
WAUGH, Patricia. Metafiction: the teory and practice of
self-conscious fiction. London, Routledge, 1984.
[1] Compasso
ternário: 1,2,3 - 1,2,3, como uma valsa, pá ra ra - pá ra ra.
[2] Em música se usa o termo
"frase" mesmo, para uma sequência que transmite uma idéia, um
sentimento. Porque a música fala, então tem frases.
[3] Frase
principal: sequência que mais se repete.
[4] Resposta: quando um instrumento
(ou grupo de instrumentos) dá uma frase e outro instrumento fala outra coisa,
logo em seguida, normalmente é uma resposta à frase anterior.
[5] Crescendo em
intensidade: ficando mais forte.
[6] Mudando de tonalidade: quando a
frase toda fica mais aguda, ou mais grave. Nesse caso, ficando mais aguda e,
talvez, assustadora.
[7] Notas
descendentes: de cima para baixo. Ex.: dó, si, lá, sol, fá, mi, ré, dó.
[8] Graus conjuntos: notas que estão
uma do lado da outra na sequência das notas. Ex.: sol e fá, si e lá
[9] Esta análise da trilha sonora foi
feita com a colaboração de Debora Mota, Bacharelanda em Música/UFPB.
[10] Traduções do inglês feitas pela
autora deste trabalho. Original: metafiction is a term given to fictional
writing which self-consciously and systematically draws attention to its status
as an artefact in order to pose questions about the relationship between
fiction and reality.
[12] Original: Contemporary metafictional writing is both a
response and a contribution to an even more thoroughgoing sense that reality or
history are provisional: no longer a world of eternal verities but a series of
constructions, artifices, impermanent structures.
[13] Nos extras do DVD a que se tem
acesso, Paulo Emílio Salles Gomes oferece algumas informações sobre a produção
do filme.
[14]
Tea Room
[15] Original: 'meta'
terms, therefore, are required in order to explore the relationship between the
arbitrary linguistic system and the world to which it apparently refers. In
fiction they are required in order to explore the relationship between the
world of the fiction and the world outside the fiction.
Um comentário:
Boa noite Késia, não conheço o filme, ainda, mas de acordo com seu texto irei logo que encontrar, vê-lo.Gostei do seu texto, da sua entrega em relatar partes do filmes, que nos ajuda a desejar sair correndo em busca do filme. A própria relação da metaficcção termo que ainda não li, mas que citas tão bem, e nos faz perceber o seu conhecimento no assunto. Enfim, um belo texto. Parabéns.
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