quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A METAFICÇÃO EM "HIROSHIMA, MEU AMOR", FILME DE ALAIN RESNAIS

Por Késia Mota 

Um casal passa a noite fazendo amor em Hiroshima. Ela é francesa; ele, japonês.  Após vinte e quatro horas, ela voltará a Paris, onde é esperada, mas ele deseja a sua permanência na simbólica cidade. É um filme sobre Hiroshima, um filme sobre lembranças, um filme sobre o amor. Juntos, o casal passa as últimas horas na cidade japonesa. Nesta ocasião, a história de Hiroshima é revisitada. Mais que isso, a história de amor adolescente da personagem. "Hiroshima, meu amor" encanta pelo tom poético que o caracteriza do início ao fim. Há na abertura, em que aparecem os créditos, a imagem de um fóssil de vegetação e uma significativa introdução de trilha sonora.
A música de Georges Delerue e Giovanni Fusco transmite ao ouvinte um clima de ansiedade e mistério, intercalado vez ou outra por certa calmaria. Em compasso ternário[1], como uma valsa, a música inicia com um instrumento de sopro, provavelmente um clarinete, tocando a frase[2] principal[3], transmitindo um certo suspense e é respondida[4] por um piano que concorda com o que diz o clarinete. Aos poucos essa frase vai crescendo em intensidade[5] e mudando de tonalidade[6], aumentando o clima tenso de suspense, até que entra uma flauta iniciando uma nova frase em resposta à primeira, amenizando a tensão em notas descendentes[7], como que dizendo "Acalme-se, tudo vai ficar bem". Com isso, o clarinete responde em graus conjuntos[8] e em dueto com outro instrumento, retoma a tensão anterior, mas em clima de dúvida, descrença. Seria um "Será? Duvido". Esse diálogo segue ao longo da música, aparecendo ainda alguns outros instrumentos, tendo a flauta como amenizadora da tensão e suspense transmitidos pelo clarinete e o piano entre eles, angustiado, concordando ora com um, ora com outro. No entanto a música encerra deixando no ouvinte a sensação de que tal diálogo não chegou a uma conclusão (se a tensão era justa ou se haveria paz), transmitindo mistério e inquietação.[9]
Pela análise da introdução, nota-se que toda a trilha sonora é elemento intensamente significativo e belo em "Hiroshima, meu amor". A delicadeza das falas dos personagens, ao mesmo tempo de suavidade e força, a reflexão que pode ser proporcionada ao espectador, os movimentos, ora lentos, ora rápidos, tudo é acompanhado positivamente pela representativa trilha sonora. 
Imediatamente depois da abertura, com o escurecimento total da tela, inicia-se a encantadora e extremamente simbólica cena que pode ser considerada o preâmbulo do filme. Os braços do casal entrelaçados, ao som de uma belíssima e suave música. Primeiro os corpos estão cobertos de cinzas, mas em movimento. É como se fosse um abraço ocorrido no momento da tragédia de Hiroshima, como se ele a estivesse protegendo, pois as cinzas caem sobre os corpos, como uma chuva da poeira radioativa. Em segundo lugar, as cinzas passam a ter brilho, intensificando a ideia de poeira de radioatividade. Chove poeira brilhosa sobre os corpos, ele sempre parecendo abraçar para proteger a mulher. Na terceira parte, já não há mais cinzas nem chove poeira. Os corpos estão suados, o abraço já não parece de proteção, mas abraço sensual de corpos deitados, e ela está sobre ele. Em seguida, na quarta parte, os corpos continuam suados, em abraço sensual, e agora ele está sobre ela. Na quinta parte do preâmbulo, bem maior que as quatro anteriores, ocorre um poético diálogo; a cena do abraço é intercalada por ilustrativas cenas de Hiroshima. Os corpos não estão mais suados, o abraço sensual agora é mostrado a partir das costas dele e as mãos dela aparecem acariciando estas costas.
Logo depois desse preâmbulo, tocando os ombros e as costas dele, a personagem diz: "É incrível como a sua pele é bela." É exatamente neste momento que encerra o fundo musical e o som ao fundo passa a ser de grilos, animais noturnos. Percebe-se que as próximas cenas e os próximos diálogos, a partir de então, referem-se ao desenvolvimento da história, é o enredo. Essa passagem do preâmbulo para o desenvolvimento da história é bem perceptível ao espectador.
A análise de um filme rico como este é uma atividade que pode ser realizada a partir de inúmeras categorias. A forte personagem, o jogo com o tempo, os espaços – Hiroshima, Nevers, Paris –, a trilha musical, o enredo e muitos outras categorias certamente rendem trabalhos interessantes e importantes. Porém, depois de assistir ao filme diversas vezes e perceber as significativas representações nele presentes, especialmente considerando o poético e belo preâmbulo, nota-se que vale muito analisá-lo a partir da noção de metalinguagem, isto é, da metaficção. Relevante a contribuição de Bernardo (2010), Stam (1981) e Waugh (1984) a respeito do tema.
Para Gustavo Bernardo (2010), a metaficção é o além da ficção e é a ficção dentro da ficção. Patricia Waugh (1984, p. 2 e 5) ensina que "metaficção é um termo dado à escrita ficcional que auto-consciente e sistematicamente chama a atenção para seu status como um artefato, a fim de colocar questões sobre a relação entre ficção e realidade"[10] e que "metaficção é uma tendência ou uma função inerente a todas as narrativas"[11]. Robert Stam (1981, p. 55), nomeando metaficção como "arte auto-reflexiva", afirma que ela "chama a atenção de maneira provocante, para seus próprios artifícios".
Sendo um filme sobre a terrível catástrofe da bomba de Hiroshima, o enredo de "Hiroshima, meu amor" vai além do relato dos fatos históricos. Fala da catástrofe, mas não é só isso. É uma narrativa dentro da narrativa histórica. É, portanto, um filme essencialmente metaficcional. Bernardo (2010, p. 60) bem comenta que "[...] não se representa a realidade para repeti-la ou duplicá-la, [...], mas sim para dobrá-la, isto é, para recriá-la outra."
A personagem fala da tragédia de Hiroshima e ao mesmo tempo da sua própria tragédia, quando jovem, em Nevers, França. O espectador observa, em outro momento do filme, que a personagem,  no passado, teve os cabelos tosados, perdendo a cabeleira, como as mulheres vítimas da bomba. Também a bicicleta retorcida, que aparece na cena em que ela fala do ferro retorcido, tem relação com a sua lembrança da bicicleta que usava na juventude para encontrar o namorado alemão e que foi seu transporte no "exílio" para Paris, uma viagem de dois dias. No decorrer do filme, o espectador pode perceber diversas relações entre a história de Hiroshima e a história da personagem. Não é à toa que ela declara ter observado a si mesma enquanto observava as pessoas. É por isso que Waugh (1984, p. 7) declara: "Escrita metaficcional contemporânea é ao mesmo tempo uma resposta e uma contribuição para uma noção ainda mais profunda de que a realidade ou a história têm caráter provisório: não mais um mundo de verdades eternas, mas uma série de construções, artifícios, estruturas não permanentes[12]."
Para elaborar o roteiro de um filme sobre Hiroshima, uma história real mundialmente conhecida, Alain Resnais e Marguerite Duras criaram a história de uma mulher francesa temporariamente em Hiroshima. Mulher que teve, na juventude, um grande amor, porém proibido. Este atributo do filme ilustra o ensinamento de Bernardo (2010, p. 166) sobre "metaficção historiográfica do século XX: ele parte de um episódio histórico 'real' para a seguir descartá-lo e não mais se referir a ele, como se não fosse importante." O autor afirma, inclusive, que "[...] a presença do personagem histórico em um trabalho de ficção não torna a ficção mais 'histórica', e sim contamina de ficção a história." (BERNARDO, 2010, p. 184)
Existe uma narrativa dentro da narrativa, em "Hiroshima, meu amor", isto é, uma história de vida dentro da história coletiva (real) da cidade símbolo da bomba atômica. Acontece que "[...] uma ficção se encontra dentro da outra – e uma nunca é a simples reprodução da outra, mas outra coisa." (BERNARDO, 2010, p. 88).
"Hiroshima, meu amor" é uma narrativa sobre Hiroshima que evita com sucesso fazer uma cópia dos relatos dos noticiários e documentários. Sabendo-se que Alain Resnais foi contratado para fazer um filme sobre Hiroshima e, depois de assistir a todos os documentários sobre o tema, negou a possibilidade de reproduzir o mesmo que outros já haviam mostrado e, assim, buscou a colaboração de Marguerite Duras para elaborar um roteiro que unisse os fatos reais, o cinema e a literatura[13], entende-se perfeitamente o que ensina Bernardo (2010, p. 182): "A verdade 'mesma' é cinzenta, sensaborosa e, em última análise, inacessível, ao passo que a verdade do poeta é colorida, suculenta e intensa." Semelhantemente, Stam (1981, p.65) ensina: "[...] É a ficção antiilusionista que, em vez de oferecer-nos uma narrativa linear e contínua, confronta-nos com uma proliferação de histórias que parecem se multiplicar por fissão. Inúmeras histórias ocorrem simultaneamente. [...] entrelaçaram as histórias-dentro-da-história em um labirinto narrativo".
Já que esta análise é sobre um filme, falar de história dentro da história é também falar de filme dentro de filme, situação presente em "Hiroshima, meu amor". Uma atriz representando uma atriz, um filme sobre Hiroshima dentro de um filme sobre Hiroshima. Talvez esta seja a mais evidente e explícita marca de metaficcionalidade em "Hiroshima, meu amor". Pouco depois que o personagem comenta que não se zomba de filmes sobre a paz, em Hiroshima, as cenas são das filmagens. O expectador pode ver parte das técnicas de realização de um filme. Aparecem iluminadores e câmeras colocados em um andaime; aparece alguém, talvez um contrarregra, orientando figurantes; aparece um ator com o corpo todo maquiado, como se fosse uma vítima da bomba, tudo isso enquanto os personagens principais falam de amor.  É o filme em análise demonstrando o que ensina Stam (1981) sobre expor os seus próprios artifícios, suas próprias técnicas.
Outra situação em que "Hiroshima, meu amor" "chama a atenção de maneira provocante para os seus próprios artifícios" (STAM, 1981, p. 55), é quando a personagem diz que conhecer-se em Hiroshima é incomum. Conhecer alguém em Hiroshima, ter um relacionamento amoroso com um cidadão de Hiroshima, uma mulher francesa apaixonar-se em Hiroshima, isso é incomum. Quer dizer, não é comum ouvir falar nisso. Colocar esta fala na personagem do filme é como declarar ao espectador que o filme é incomum porque conta uma história inesperada, algo incomum sobre Hiroshima. Não as bombas ou as vítimas, as doenças, a destruição, a guerra ou qualquer outro tema que é comum a respeito de Hiroshima. Conhecer-se em Hiroshima é incomum. O filme é incomum. Esta é uma bela marca de autorreflexividade no filme.
Na sequência do diálogo, o personagem interessa-se pelo que acontecia à personagem no momento da bomba e o que o fato histórico significou para ela. É o texto fílmico revelando que, já que várias histórias pessoais aconteceram, enquanto ocorria a história de Hiroshima, o filme pode contar mais do que somente os fatos relacionados à bomba pois estes fatos tiveram diferentes sentidos para diferentes experiências pessoais.
Perto do final do filme, quando os personagem estão na estação de trem (ou rodoviária), ele diz a uma senhora idosa "Nós estamos tristes por nos separarmos". Exatamente neste momento, ela sai do local, toma um táxi e vai para um bar chamado "Casablanca". Ele a segue. Impossível não pensar no filme intitulado "Casablanca", vencedor do Oscar de melhor filme em 1943, que conta igualmente a história de uma mulher que encontra o amor em um país estrangeiro e depois volta sem este homem para a sua terra. Bernardo (2010, p. 43 e 244) diz que a "intertextualidade [...] integra os processos metaficcionais" e que "esse diálogo entre discursos já torna esse gênero metaficcional por excelência."
Muito interessante observar o quanto é explícita esta intertextualidade. O espectador é evidentemente induzido a perceber que a intertextualidade ocorre. Não é disfarçada. O casal está numa estação de trem (ou numa rodoviária), em "Hiroshima, meu amor", o que lembra o aeroporto, em "Casablanca". Ela pega um táxi e vai sem ele para um bar, não mais uma tradicional Casa de Chá[14], como de costume, no Japão, e como aconteceu antes, no próprio filme. Lembra o bar de "Casablanca". Provavelmente, ele não partirá com ela, nem ela permanecerá com ele, igual ao que acontece em "Casablanca". Enfim, é uma intertextualidade que não passa despercebida. Outras relações de intertextualidade, ao longo do filme, poderiam ser apontadas, além desta, como as semelhanças com a obra de Hitchcock, por exemplo. Mas seriam relações que passam um pouco despercebidas. Somente o espectador mais atento notaria.
A ideia de que em metaficção são explícitos os signos ficcionais é defendida por Bernardo (2010, p. 181): "Sabemos que a metaficção é uma ficção que explicita sua condição de ficção, quebrando o contrato de ilusão entre o autor e o leitor, ou entre o diretor e espectador. A metaficção se define bem como uma ficção que não esconde que o é, obrigando o espectador, no caso, a manter a consciência clara de ver um relato ficcional e não um relato 'verdadeiro'."
Diante de todo o exposto, pode-se considerar "Hiroshima, meu amor" um filme carregado de signos metaficcionais. Waugh (1984, p. 3) ensina que " 'meta' termos, portanto, são necessários a fim de explorar a relação entre o sistema lingüístico arbitrário e do mundo a  que aparentemente se refere. Na ficção eles são necessários a fim de explorar a relação entre o mundo da ficção e o mundo fora da ficção[15]".
Tamanha carga de metaficcionalidade de "Hiroshima, meu amor" atende a esta necessidade. É de se dizer que isto faz dele um filme forte, intenso e muito rico, artisticamente. Se ele foi feito com a intensão de marcar eternamente a memória dos seus espectadores, então obteve todo êxito nisso.
Susan Sontag (1987, p. 16) diz que "a arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervosos". "Hiroshima, meu amor" nos deixa muito nervosos. Impossível não se sentir fascinado por este filme, positiva ou mesmo negativamante, seja por causa da sua poesia, por sua musicalidade, por sua força estética, seu elenco belo e atuante, e até mesmo por ser uma obra de arte que favorece, academicamente, a possibilidade de realizar inúmeras análises, em diversas categorias e perspectivas diferentes.

REFERÊNCIAS:

BERNARDO, Gustavo. O livro da metaficção. Rio de Janeiro: Tinta Negra Bazar Editorial, 2010.

HIROSHIMA, meu amor (Hiroshima mon amour). Direção: Alain Resnais. Roteiro: Marguerite Duras. Elenco: Emmanuelle Riva, Eiji Okada e outros. Trilha Sonora: Georges Deleure e Giovanni Fusco. França/Japão: Argos Films, Como Films, DAIEI Motion Picture Co Ltd et Pathe Overseas Productions, 1959.

SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Trad. de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, 1987.

STAM, Robert. Homo Ludens: O Gênero Auto-Reflexivo no Romance e no Filme. In.:  O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Tradução de José Eduardo Moretzsohn. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

WAUGH, Patricia. Metafiction: the teory and practice of self-conscious fiction. London, Routledge, 1984.





[1] Compasso ternário: 1,2,3 - 1,2,3, como uma valsa, pá ra ra - pá ra ra.
[2] Em música se usa o termo "frase" mesmo, para uma sequência que transmite uma idéia, um sentimento. Porque a música fala, então tem frases.
[3] Frase principal: sequência que mais se repete.
[4] Resposta: quando um instrumento (ou grupo de instrumentos) dá uma frase e outro instrumento fala outra coisa, logo em seguida, normalmente é uma resposta à frase anterior.
[5] Crescendo em intensidade: ficando mais forte.
[6] Mudando de tonalidade: quando a frase toda fica mais aguda, ou mais grave. Nesse caso, ficando mais aguda e, talvez, assustadora.
[7] Notas descendentes: de cima para baixo. Ex.: dó, si, lá, sol, fá, mi, ré, dó.
[8] Graus conjuntos: notas que estão uma do lado da outra na sequência das notas. Ex.: sol e fá, si e lá
[9] Esta análise da trilha sonora foi feita com a colaboração de Debora Mota, Bacharelanda em Música/UFPB.
[10] Traduções do inglês feitas pela autora deste trabalho. Original: metafiction is a term given to fictional writing which self-consciously and systematically draws attention to its status as an artefact in order to pose questions about the relationship between fiction and reality.
[11] Original: metafiction is a tendency or function inherent in all novels.
[12] Original: Contemporary metafictional writing is both a response and a contribution to an even more thoroughgoing sense that reality or history are provisional: no longer a world of eternal verities but a series of constructions, artifices, impermanent structures.
[13] Nos extras do DVD a que se tem acesso, Paulo Emílio Salles Gomes oferece algumas informações sobre a produção do filme.
[14] Tea Room
[15] Original: 'meta' terms, therefore, are required in order to explore the relationship between the arbitrary linguistic system and the world to which it apparently refers. In fiction they are required in order to explore the relationship between the world of the fiction and the world outside the fiction.

Um comentário:

artes e convites disse...

Boa noite Késia, não conheço o filme, ainda, mas de acordo com seu texto irei logo que encontrar, vê-lo.Gostei do seu texto, da sua entrega em relatar partes do filmes, que nos ajuda a desejar sair correndo em busca do filme. A própria relação da metaficcção termo que ainda não li, mas que citas tão bem, e nos faz perceber o seu conhecimento no assunto. Enfim, um belo texto. Parabéns.