quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Céu sobre a minha cabeça

Por Késia Mota

O despertador tocava. Levantar, chamar as crianças, banho, uniforme, cabelo, mochila, "escovou os dentes?", "tá na hora!". Saíam com tanta pressa que nem lembravam de dizer "bom dia, mãe" ou "tchau, querida". Sentia falta. Esticava o rosto, na esperança de receber um beijo. O passar do tempo apagou o beijo, o rosto desistiu de esticar.

Sempre desejava voltar para a cama e dormir mais um pouco, mas não podia. Sonhava ter uma auxiliar para lhe permitir esse e outros luxos. Não tinha luxo algum. Forrar as camas, lavar a louça, tirar o lixo, preparar o almoço. O que faria hoje? Ligar a tevê, programas de culinária, que nunca conseguia ver, só ouvir. De vez em quando se dava conta de que respondia e falava com os apresentadores. Falava com as panelas. Falava com os móveis. Falava com o lixo.

Hora do almoço, as crianças e o marido chegariam. Fazia a batata frita de que tanto gostavam. Chegavam tagarelando, falando de si mesmos, dos seus inúmeros problemas impossíveis de resolver. Comiam as batatas como se surgissem do nada; deixavam os pratos sujos sobre a mesa, como se a sujeira fosse desaparecer sozinha; saíam naturalmente para cuidar da vida. E o rosto, já nem tinha lembrança de quando havia esticado pela última vez.

Dia após dia a vida ia passando, o mundo ia girando. Acordar, trabalhar, deitar e dormir. Nos finais de semana, que alívio, não teria que acordar cedo. No entanto, a  música tocava, a filha queria continuar ouvindo a banda de rock, o filho queria forró, o marido queria a Fórmula 1. Todos queriam almoçar, roupa lavada e passada, banheiros limpos, sapatos engraxados, vestido para a festa de aniversário da amiga, presente para a namorada, jornal não tocado, arroz com pouco sal, feijão com muito sal, pregar um botão que caiu.

Numa certa manhã, depois de ver todos saírem apressados, olhou pela janela do apartamento. Observou as pessoas vivendo, o mundo acontecendo. Passou algumas horas contemplando a cena da vida livre. Sem parar para pensar, preparou uma mala, tomou um banho demorado e saiu. Foi ao salão de beleza da esquina, renovou a tintura loira, fez escova, manicure, pedicure e depilação. Passou no banco, sacou o que podia, depois no shopping, roupas novas. Dirigiu-se à rodoviária, escolheu um destino e o seguiu.

Na porta da geladeira, preso a um ímã, o bilhete: "Certamente não sentirão a minha falta, por hoje. Tem comida no freezer, basta levar ao microondas, seguindo as orientações. Não perguntem para onde terei ido, não haveria quem respondesse. Sigo para onde eu possa simplesmente admirar demoradamente o céu sobre a minha própria cabeça".

Clube do Conto da Paraíba, dia 15/11/2008
Tema: o céu sobre nossas cabeças

2 comentários:

LEO B disse...

Não sabia que você tinha participado do clube do conto. Conheço alguns integrantes. Percebi que você gosta de escrever literalmente sobre a rotina e sobre dormir. Com relação ao dormir é meio contraditório para quem vive madrugando. Beijo

Késia Mota disse...

Não sou eu, é a "ela lírica" kkk

Ela não tem nada a ver comigo, mas eu morro de medo de ser ela, tenho aversão a ser ela, evito ser ela, nunca serei ela. kkkkkk