domingo, 9 de janeiro de 2011

O foco narrativo no conto "Famigerado", de Guimarães Rosa

1. Proposição do trabalho
O corpus escolhido para a análise literária é o conto "Famigerado", de Guimarães Rosa[1]. A categoria a ser analisada é o foco narrativo, o ponto de vista do narrador. Trata-se de um conto em que o narrador-personagem, motivado pelo medo, projeta a imagem do seu interlocutor, um homem vingativo. Para entender quais as possibilidades de tratamento da categoria, a fundamentação teórica do trabalho estará em Friedman (2002)[2] e em Leite (1989)[3].
2. Justificativa
O conto "Famigerado" tem como narrador um personagem amedrontado com a presença de um outro personagem que o interpela. Seria esse narrador "confiável"? Esta é a questão que deverá impulsionar o trabalho monográfico ora proposto.
Norman Friedman (2002) elaborou uma tipologia do narrador que interessa muito ao estudioso de literatura e deve ser levada em consideração quando a tarefa a ser empreendida é a análise literária. A tipologia de Friedman é retomada e comentada por Ligia Chiappini Moraes Leite, no seu livro O foco narrativo (1989).
Quem é o narrador de "Famigerado"? O seu nome não é mencionado, mas há no texto clara menção ao nome do seu interlocutor, "Damásio, dos Siqueiras". Qual dos dois é o personagem mais importante, no conto? O personagem-narrador ou Damásio? Como responder a esta pergunta? Então, como determinar qual a posição do narrador, na história que conta? Que informações ele possui para comunicar a história? Qual o seu grau de envolvimento com a história? Estas e outras perguntas devem ser levadas em consideração para compreender o narrador do corpus estudado.
O objetivo do trabalho é conhecer os conceitos presentes nestes questionamentos. Para realizar essa tarefa, a aplicação da fundamentação teórica proposta ao corpus selecionado poderá ser uma tarefa de relevante valor, tendo em vista que o conto "Famigerado" tem um narrador em primeira pessoa - o tipo de narrador mais "suspeito" que existe, além de apresentar uma linguagem rica, de regionalismo muito bem estruturado, característica típica das obras de Guimarães Rosa, em que as estruturas linguísticas não são fruto do acaso, mas possuem sentido e podem contribuir muito para a análise. O uso de uma determinada expressão em detrimento de outra, por exemplo, pode ser uma maneira de o texto dar pistas sobre o narrador e a sua natureza.
Enfim, o presente trabalho de análise literária justifica-se por ser uma possível contribuição interessante para a compreensão da figura do narrador no texto literário, além de oferecer mais uma leitura do conto escolhido como corpus.
3. Sinopse do conto
Guimarães Rosa é um dos maiores escritores da literatura brasileira. A sua obra é rica em diversos aspectos, como a criatividade com que elabora o enredo e o trato especial que dá à linguagem. O conto "Famigerado", de sua autoria, é o relato de um homem, provavelmente médico de uma cidade do interior de Minas Gerais, sobre um episódio ocorrido em sua vida, quando um conhecido cangaceiro bate à sua porta para pedir informação sobre o significado da palavra famigerado, pela qual é qualificado por um funcionário público alguns dias antes. Conhecer o significado daquela palavra seria o meio de decidir sobre o destino daquele funcionário público. Assustado, embora não seja ameaçado, o narrador conta como é levado a enganar o cangaceiro, dando à palavra um sentido equivocado. Segundo o seu ponto de vista, esta atitude serviria para abrandar o coração do seu interlocutor, salvando aquele desconhecido funcionário público e, igualmente, a si mesmo, de um ato vingativo.
4. Análise textual
Para analisar o conto "Famigerado", de Guimarães Rosa, a partir da categoria foco narrativo, é interessante conhecer a tipologia proposta por Norman Friedman, no artigo intitulado "O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico", publicado pela Revista USP. Friedman oferece uma excelente orientação a respeito da tipologia do narrador, levando em conta o ponto de vista do mesmo:
Já que o problema do narrador é a transmissão apropriada de sua estória ao leitor, as questões devem ser algo como: 1) Quem fala ao leitor? (...); 2) De que posição (ângulo) em relação à estória ele a conta? (...); 3) Que canais de informação o narrador usa para transmitir a estória ao leitor? (...); e 4) A que distância ele coloca o leitor da estória? (...). E, ademais, já que nossa principal distinção é entre "contar" e "mostrar", a sequência de nossas respostas deveria proceder gradualmente de um extremo a outro: da afirmação à inferência, da exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da ideia à imagem. (RU, p. 171)
A análise textual do conto em estudo pode oferecer as respostas a todas essas perguntas propostas por Friedman. Apresentar estas respostas é um importante passo para ter contato com o narrador. Em primeiro lugar, é possível afirmar que se trata, evidentemente, de uma narrativa feita em primeira pessoa, pelo que se pode verificar nas seguintes ocorrências do pronome "eu", em relação ao próprio narrador: "(...) Eu estava em casa, (...) Eu não tinha arma ao alcance. (...) Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, (...) não queria que eu a desse de imediato. (...) Tinha eu que descobrir a cara. (...) Bem que eu me carecia (...) então eu sincero disse: (...)".
Respondendo à pergunta "quem fala ao leitor?", entende-se que, provavelmente, o narrador é um médico, pelo que se lê no conto: "Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta". Ademais, o narrador se expressa usando a norma culta da língua. Infere-se daí que é uma pessoa que possui alto nível de escolaridade, que se destaca pela sua linguagem. Certamente, uma pessoa que conhece bem o sentido da palavra famigerado, objeto da dúvida do famoso cangaceiro com quem dialoga. É o que denota, desde os primeiros momentos do relato, a linguagem utilizada:
Foi de incerta feita — o evento. (...). Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. (...).
No conto em análise, a figura do interlocutor é relevante, para caracterizar o narrador. Damázio, dos Siqueiras, é o seu nome. Cangaceiro muito conhecido na região, homem temido por suas histórias de crueldade, pelo que relata o texto: "Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo". O narrador está em casa e este "perigosíssimo" Damázio chega à sua porta para lhe pedir o favor de informar sobre algo que o inquieta. Pode-se admitir, daí, que o narrador conta a história do ângulo central, frontalmente, posição de quem vive a situação que relata, o que responde à segunda questão aduzida por Friedman, na citação acima.
Quanto aos canais de informação utilizados para transmitir a estória, a leitura do conto revela que o narrador, sendo morador de uma cidade do interior, como se infere da seguinte afirmação: "Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo", está acostumado a ver ou ouvir falar sobre a figura de cangaceiros valentes, perigosos, especialmente o interlocutor, o tal Damázio — "(...) quem dele não ouvira?". Este, por sua vez, se não conhece a pessoa do homem a quem visita — o narrador —, ao menos tem informações a seu respeito: médico da cidade, homem capaz de lhe dizer o significado de uma palavra desconhecida.
Numa pequena cidade interiorana, um arraial, poucas pessoas recebem instrução suficiente para conhecer o significado de determinadas palavras. O médico da cidade é uma dessas pessoas. O narrador, sendo médico, é inevitavelmente conhecido por muitos, na região onde vive. Quando um visitante, qualquer que seja, se aproxima do local perguntando por alguém que lhe tire a dúvida sobre o sentido de uma palavra, certamente o médico é apontado pelos habitantes do lugar, tanto quanto o padre. Mas o cangaceiro não se dá com os padres. Resta-lhe procurar o médico. É o que ele faz, pelo que se interpreta da seguinte fala:
— Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...
(...)
— Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?
Ocorre que estas não são as impressões do narrador. A única sensação que ele tem é de muito medo, como declara em diversas situações: "(...) Tomei-me nos nervos. (...) E concebi grande dúvida. (...) O medo O. O medo me miava. (...) Sobressalto (...)". Apavorado, não consegue raciocinar. O seu pensamento é negativo. O cangaceiro que está à sua porta, sendo homem terrivelmente temido, célebre pelas suas crueldades, indubitavelmente, na sua concepção, haveria de querer fazer mal a todas as pessoas que interpelasse. Essa ideia negativa é expressa no seguinte trecho do conto: "E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?"
A quarta indagação proposta por Friedman sugere verificar se a transmissão da estória pelo narrador ao leitor é apropriada, a partir de uma medida da distância em que o narrador coloca o leitor em relação à estória. Embora o narrador expresse impressões negativas sobre a visita do cangaceiro Damázio, acreditando relatar o que considera fortes motivos para ter medo, transmite também informações contrárias ao seu ponto de vista. Pode-se inferir daí a ideia de que o leitor é colocado em uma posição muito próxima dos fatos ocorridos, noção amparada pela teoria de Friedman.
Se, por um lado, o narrador declara: "Sua máxima violência podia ser para qualquer momento. (...) Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo", por outro lado, diz: " Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar." Igualmente, se o narrador diz: "Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia", também deixa uma forte pista de que a sua percepção dos fatos pode não ser totalmente confiável, declarando logo em seguida: "O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava."
Assim, o leitor deste conto tem elementos suficientes para entender a história relatada sob o mesmo ponto de vista do narrador, fazendo o mesmo juízo de valor a respeito do seu interlocutor, como também tem elementos para fazer uma interpretação diferente. O leitor pode concordar com o narrador, acreditando em todos os seus motivos para ficar apavorado, como também pode entender que o cangaceiro fazia uma visita absolutamente pacífica, respeitosa, que mal algum faria ao médico, homem instruído, inteligente, que o auxiliaria numa questão séria. Essa segunda concepção pode ser fundamentada, por exemplo, nas seguintes falas de Damázio: "— Vosmecê não veja em minha grosseria no não entender" e "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!"
Para uma tipologia do narrador, Friedman sugere a seguinte classificação: autor onisciente intruso, narrador onisciente neutro, "eu" como testemunha, narrador-protagonista, onisciência seletiva múltipla, onisciência seletiva, o modo dramático e a câmera.
O autor onisciente intruso é o narrador que tem total liberdade, que pode se localizar acima da estória, como um demiurgo, também pode ficar na periferia ou no centro dos acontecimentos narrados, de fora, de frente, ou ainda ficar em diferentes posições. No dizer de Leite (FN, p. 27), "como canais de informação, predominam suas próprias palavras, pensamentos e percepções". Segundo Leite (FN, p. 32), esta categoria se distingue da seguinte, autor onisciente neutro, porque este, sendo neutro, não alude instruções e comentários gerais, mesmo que sua presença seja sempre muito clara.
O narrador-testemunha ("eu" como testemunha), de Friedman, narra em primeira pessoa e vive os acontecimentos narrados, mas está situado em um ângulo de visão mais limitado. Distingue-se do narrador-protagonista por ser este o personagem central da narrativa, mesmo não sendo conhecedor do íntimo dos demais personagens. Para Leite (FN, p. 43), "narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos".
Quanto à categoria onisciência seletiva múltipla, nesta não há propriamente narrador, conforme Leite (FN, p. 47), pois "a história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. Há um predomínio quase absoluto da cena". Esta categoria é semelhante à categoria seguinte, a onisciência seletiva. A distinção reside no fato de que esta última apresenta apenas uma personagem e a anterior apresenta muitas. Segundo Leite (FN, p. 54), em relação à onisciência seletiva, "o ângulo é central e os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente".
A penúltima categoria é o modo dramático. Como o nome sugere, é semelhante ao teatro, em que não há narrador. As informações são limitadas aos atos e falas das personagens. Para Leite (FN, p. 58), "ao leitor cabe deduzir as significações a partir dos movimentos e palavras das personagens".
Finalmente, a última categoria de Friedman é a câmera. Para Friedman (RU, p. 179), o tipo de ponto de vista "que parece ser o último em matéria de exclusão autoral. (...) [cujo] [4] objetivo é transmitir, sem seleção ou organização aparente, um 'pedaço da vida' da maneira como ela acontece diante do medium de registro (...)".
O narrador do conto "Famigerado" é, nitidamente, um personagem da narrativa. O seu relato é feito em primeira pessoa, ele vive os fatos descritos, que narra mesmo sem saber o que pensa o seu interlocutor e os demais personagens da estória, e o seu ângulo de visão não é muito limitado. Embora o personagem Damásio tenha certo relevo, na estória narrada, pode-se inferir que o narrador é o protagonista. Assim, conclui-se que o narrador do conto, de acordo com a teoria de Friedman, é um narrador-protagonista.
REFERÊNCIAS
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. In: Revista USP, n. 53. São Paulo: USP, CCS, 2002, p. 166-182. [Disponível também no site: http://www.usp.br/revistausp/53/15-norman-2.pdf]
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1989.

NOTAS:

[1] ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
[2] FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. In: Revista USP. São Paulo, SP: USP, CCS, março/maio 2002, n. 53, p. 166-182. [Disponível também no site: http://www.usp.br/revistausp/53/15-norman-2.pdf]
[3] LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1989.
[4] trecho acrescentado

Este trabalho foi orientado pelo Professor Arturo Gouveia, da UFPB, quando cursei a disciplina Literatura Brasileira V, em 2010.2.
Apresentado no VII Seminário Nacional sobre Ensino de Língua Materna e Estrangeira e de Literatura - SELIMEL - em Campina Grande - PB, no dia 12/08/2011.
Referência desta postagem:
MOTA, Késia. O foco narrativo no conto "Famigerado", de Guimarães Rosa. In: http://kesiamota.blogspot.com/2011/01/o-foco-narrativo-no-conto-famigerado-de.html#links, disponível em __/__/____, às __h__.

6 comentários:

Verônica Barbosa disse...

Késia, está excelente essa sua análise literária do conto "Famigerado", de Guimarães Rosa.
Amiga, parabéns, você como sempre arrasa. Beijos, querida, e boa sorte nesse seu blog maravilhoso!!!

Késia Mota disse...

Ah, Verônica, que gentileza!
Obrigada pelo comentário.
Beijos

Anônimo disse...

me fale por favor os personagens do texto famigeraldo

Késia Mota disse...

Desculpa a demora, viu? Tenho aparecido pouco pelo meu blog, né? Olha, no seguinte link você encontra o texto do conto Famigerado: http://www.releituras.com/guimarosa_menu.asp

Na verdade, não há nomes de todos os personagens. Aparece apenas o nome do Damásio.

Abração, Késia Mota

Anônimo disse...

Tiw ki texto zika fico 10 sem na maldade ta uma boniteza dos Deuses sjvshbhs

Unknown disse...

Boa tarde. Adorei sua análise. Muito clara e objetiva. Eu sempre tinha analisado este conto como se o narrador fosse um farmacêutico. Obrigada pelo esclarecimento